quinta-feira, 21 de maio de 2020

Uma carta de desabafo



Piracicaba, 19 de maio de 2020.

Quando eu era mais nova, a forma que eu tinha para superar meus problemas era escrevendo. Superei os amores da minha adolescência escrevendo poesia. Como Carlos Drummond dizia "Meu verso é minha consolação, meu verso é minha cachaça". Uma menina com seus 15 anos não deveria ter outras dores que não fossem as de um coração partido, e eu não as tive.

Hoje com 31 anos, não consigo lidar com a realidade, mas ela insiste em bater à minha porta sem piedade. Não tenho vontade de pensar a respeito, não tenho vontade de escrever. Acho que estou numa fase da vida que a fala da Angelica Liddell me define melhor que a de Drummond: "Alguém disse que depois dos horrores do século XX não era possível continuar a escrever. A palavra tinha se tornado absurda, insuficiente."

Essa noite, sonhei com uma das minhas melhores amigas da época de escola. Sonhei e lembrei como foi minha adolescência. Minhas únicas preocupações eram estudar para ter boas notas e o amor. Olhando para minha juventude, vejo que tive uma vida tranquila e sem grandes problemas. Tive uma vida feliz. Não nasci numa época de guerra e não vivenciei nenhuma grande tragédia. Em todos os meus anos de vida, a única tristeza real foi a morte dos meus familiares. Em menos de uma década, perdi cinco pessoas. Perdi dois tios para o câncer e a morte deles foi rápida e inesperada. Sinto que não me despedi direito deles. Que não vivi o bastante ao lado deles. Prometemos fazer tantas coisas juntos e não pudemos fazer. Dar adeus a quem amamos é poder fazer tudo aquilo que planejamos antes e poder não ter arrependimentos. Com a chegada dessa pandemia, tenho medo de não conseguir me despedir de mais gente que amo. Tenho muito medo da morte, não tenho medo de morrer, mas tenho medo de passar novamente pela experiência de perder alguém. Por isso que me esforcei durante muito tempo para não pensar a respeito. Dói pensar. 

Faz cerca de dois meses que minha vida é um hiato. Não vejo meus amigos, não saio de casa. Sou só eu, meus pais e minha irmã. Fico apavorada ao notar que muitos não estão entendendo como é sério a pandemia pela qual estamos passando. É, sem sombra de dúvida, a situação mais apavorante pela a qual passei. Logo no início, quando meus pais notaram como era preocupante a situação, chamaram minha irmã e eu para conversar sobre o que deveríamos fazer caso os dois morressem. No dia, tentei encarar as coisas com leveza, mas toda vez que penso nisso, não consigo conter as lágrimas. Para mim, é uma sensação muito parecida de quando meus tios lutaram contra o câncer. Eu sabia que era sério, estava muito preocupada, tinha crises de choro, tentava pensar que no fim tudo ia passar e que ninguém iria morrer. Mesmo sem ter ninguém contaminado com o vírus na minha família, não sei por que, mas o sentimento é o mesmo. Sempre fui o tipo de pessoa que só se preocupa com algo quando acontece, tento não sofrer por antecipação. Confesso que nesse momento eu não consigo. Meus tios já são todos idosos, meus pais também, então como não me preocupar?

Minha irmã disse algo, sobre o isolamento social, que acredito que é bem verdade. Isolamento é igual dever de casa. Sabe quando você está na escola e não se esforça como deveria para fazer tudo certinho? Ai você entrega para a professora e ela manda você refazer. No fim, você tem que fazer a mesma coisa duas vezes. Com a quarentena, é a mesma coisa. Enquanto as pessoas não seguirem à risca a quarentena, vamos ter que refazer e ela vai se estender por mais tempo. A diferença é que quem tá seguindo o isolamento tem que ficar mais tempo em casa por causa dos que não fizeram de forma correta a tarefa. Ou pior, perder algo mais precioso que o tempo, que é a vida. É um trabalho coletivo. Então seria bom que todo mundo se conscientizasse, para passarmos por isso o mais rápido possível. Quanto mais rápido, menores serão as perdas. Precisamos nos unir pelo bem da nossa família e de todos que amamos. 

Após pensar e escrever, sigo com meu medo, mas também sigo com a esperança de que tudo isso vai passar e que nossas vidas voltem ao normal. Espero que eu não precise me despedir de mais ninguém, e espero que você, caro leitor, também não precise. Anseio pelo momento do reencontro.

Karina Kanamaru de Amorym, uma sonhadora.